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13 maio, 2008

Meu Portugal Brasileiro


Título: Meu Portugal Brasileiro
Autor: José Jorge Letria
Editora: Oficina do Livro
Ano: 2008

O romance histórico, recentemente editado, do escritor José Jorge Letria, autor que nos habituou a uma publicação regular de obras destinadas ao público infanto-juvenil, vem preencher um lugar de relevante importância no contexto da sua abundante produção literária, onde o destinatário adulto poderá encontrar conteúdos onde o Real e o Ficcional se entrecruzam, promovendo a compreensão de factos que, devido à sua complexidade e distanciamento temporal, doutra maneira estariam mais arredados da maioria dos leitores.
O Eu narrador, interveniente e espectador, toma a seu cargo a fidelização da factual transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1807, tecendo a trama de um enredo povoado por múltiplos rostos, onde a representação da infância não passa despercebida.
Com efeito, no meio da turbulência da partida, “nessas horas de aflição e de incerteza” (2008:37), encontramos as crianças “excitadas pela emoção do embarque (…), entusiasmadas com a possibilidade de irem conhecer por dentro navios de guerra” (2008:37) e, durante a viagem, “a brincar no convés com pedaço de cordame e inventando jogos com coisa nenhuma, usando apenas esse verdadeiro tesouro humano que é a imaginação” (2008:48).
Esta referência à Criança enquanto ser construtor e imaginante, inserida num contexto disfórico, acentuam o vínculo afectivo doado pela focalização narrativa onde os mais novos se destacam na sua capacidade de adaptação às contrariedades da vida, opondo-se aos representantes do mundo adulto menos receptivos a “lidar com a dureza da realidade” (2008:65).
De facto, no meio de uma agitada turbulência social e política inscrita na historicidade de Portugal e do Brasil, o porta-voz da narrativa deixa emergir um afecto especial por todos aqueles que ficaram mais arredados dos registos históricos, mas que não deixaram de participar, sofrer, agir e interferir nas transformações factuais e ficcionais, actuando junto dos principais intervenientes. O papel desempenhado pelas mulheres comuns que, por oposição às representantes da Corte, assume um estatuto de respeito, de abnegação e de orientação espiritual é disso um exemplo. Leonor, “amante das letras e das ideias novas” (2008:20), Marília que gostava de “ler e de ouvir música e tinha um gosto requintado e exigente” (2008:147), espírito antiesclavagista e partidário da independência do Brasil e Jandira com o seu “dom feiticeiro de enxergar o que os olhos não conseguem ver” (2008:111) são presença e grandes pilares de referência, representantes de um movimento de abertura ao Conhecimento quando se temia este poder nas mãos das mulheres.
O Povo é o rosto colectivo da eficácia simbólica, pois nomeado na degradante situação doada pelo abandono político, representa um Portugal de “espectros e de lamúrias” (2008:125) que só encontra eco da sua condição na histeria e na loucura de D. Maria, que entendia aquela viagem “uma traição à pátria” (2008: 25).
Desta forma, todos aqueles que, não sendo detentores de uma voz poderosa, ganham na ficcionalização um novo estatuto, onde se corporizam os valores emergentes de sempre, apoderando-se de condições que os incluem nos lugares de destaque e de grande observação discursiva, tal como acontece com os escravos, “portadores de saberes muito antigos, vindos do interior da África tribal, onde aprendiam, praticamente desde a hora do nascimento, a ler os sinais que a Natureza tinha para lhes transmitir” (2008:120).
Todos estes rostos são moldados por um artífice hábil em manusear a palavra, que tem o poder de descrever o ínfimo comportamento e de definir os múltiplos sentidos em domínios onde a poeticidade, a ironia e a cientificidade andam entrelaçados.
Se a estratégia de corporizar num narrador a vivência e a percepção de uma realidade multifacetada exerce um efeito dominante nesta ficção historiográfica, estas personagens conferem à narrativa um carácter integrador e valorizador dos que socialmente não são tão destacados e reflectem um acto de criação onde todos os aspectos da mundivivência humana são observados.
A circularidade da demanda do Eu da narração e o contorno das provações que põem termo ao distanciamento de um filho que nunca viu, encontra na exaltação do onírico a força cósmica capaz de doar o equilíbrio à sua interioridade, balizada por princípios axiológicos de permanente abertura à Alteridade, à Liberdade e ao Afecto dedicado a D. Pedro que “ se tornaria imperador de um país soberano” (2008:206).
Sem dúvida que José Jorge Letria ostenta, neste romance, a mestria de quem já percorreu múltiplos géneros literários, traçando as constelações semânticas que vinculam o mundo ficcional e o histórico-factual numa construção de excelente qualidade literária, da qual se deixam aqui alguns registos como convite a umas horas de fruição e de leitura.

Teresa Macedo







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