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29 novembro, 2007

O Piano de Cauda

Título: O Piano de Cauda.
Texto: Eugénio Roda
Ilustrações: Gémeo Luís
Editora: Edições éterogémeas

Um conto cinestésico para os mais atrevidos sonhadores

Influenciada e inspirada nos criadores deste conto (Eugénio Rodas e Gémeo Luís), diria que esta história é uma fantasia musical onde nos é permitido sonhar. Esta fantasia é composta por vários andamentos. Aqui, as ilustrações não representam meras notas de rodapé, mas acrescentam novas ideias ao texto. Assim o conto resulta de uma profunda simbiose entre a musicalidade da poesia e das ilustrações sublimes.
É bom poder imaginar onde ficará o lugar mais harmonioso de todos, no qual vive este felizardo piano de cauda, que até via do miradoiro o dia a nascer, e… dó, ré, mi, fá… o sol aparecia. Da orquestra harmoniosa também faziam parte o rio, as ervas e os pássaros. Mas naquele dia o piano ia tocar a solo. Pois a chuva tinha metido água no ensaio geral, estavam todos ensopados, roucos, desafinados. Com muita sorte, o piano de cauda livrou-se da constipação porque ficou preso nas giestas do caminho para o ensaio. De qualquer maneira, não há mal que dure, e não tardaria muito para o dia-pasão chegar e a orquestra afinar. Pois naquele lugar não há dia sem música.
Este é o fabuloso panorama do primeiro quadro descrito pelo autor Eugénio Rodas. Efectivamente, cada página é guarnecida de uma prosa musicalmente bem dotada, acompanhada de uma ilustração incrivelmente inspiradora da autoria de Gémeo Luís. Daí que vejo este conto como uma exposição de quadros.
Este conto tem quanto a mim, tudo para ser um poderoso instrumento pedagógico e didáctico entre as crianças. Agora exige um mediador minimamente conhecedor da educação e cultura musical devido à forte presença de jogos de imagens, metáforas e trocadilhos que caracterizam e enriquecem enormemente esta história. Para além disso, predominam termos e vocabulário musical, sem esquecer a musicalidade das próprias palavras e frases com que nos brinda Eugénio Rodas, que não só podem como devem ser trabalhados e discutidos com as crianças. As expressões abundam e a meu ver deliciam a nossa leitura:
Cuidado… ele pode morder!, gritaram, apontando a grande dentadura. (…)
Ao sentir as mãos do rapaz, o piano gemeu, desafinado. (…)
O rapaz demorou-se a acariciar o piano sem cauda: parecia surdo-mudo-cego, que é como quem diz, tinha os ouvidos, a boca e os olhos na ponta dos dedos. (…)
Deste modo, a cada página virada, corresponde um quadro mágico inventado (= texto + ilustração). Esta foi realmente a sensação que tive no decorrer da minha leitura. E ficamos cada vez mais curiosos à medida que vamos desvendando o conto, presos às ilustrações e aos jogos de palavras que nos despertam para uma variedade infinita de significados e de mensagens, quanto mais vezes o vermos, lermos e ouvirmos; quanto mais vezes mudarmos as lentes para o interpretar na sua globalidade.
Na minha perspectiva, este conto transmite uma mensagem tão profunda como simples: o prazer inegável que a música nos dá, quer seja ouvindo-a ou interpretando-a ao longo das nossas vidas. O piano de cauda que vive no lugar mais harmonioso do mundo, vem-nos lembrar no fundo, o quanto ela está intimamente ligada à condição e natureza humana.
Se quisermos ir mais além, acho que por detrás desta mensagem, podemos encontrar eventualmente outros significados, assim deixo uma humilde sugestão, entre tantas outras que eu acredito existirem.
Será que, à semelhança deste instrumento, não haverá também pessoas que tenham passado pela mesma situação, sentindo-se enfraquecidas? Passo a explanar a minha visão, ou viagem pelo meio da interpretação – assumindo que estou à vontade para libertar a minha imaginação.
Tal como aconteceu com o piano de cauda, há pessoas que são retiradas do seu lugar harmonioso, (da sua casa, do seu meio, do sítio onde se sentem felizes), porque existem também outras pessoas à procura de coisas raras, (pessoas exageradamente obstinadas e ambiciosas que não olham a meios para alcançar os seus objectivos e atingir os seus fins). Esquecem-se estas últimas, que o sucesso, a diferenciação que procuravam para se demarcarem dos outros indivíduos, torna-se supérflua e sem sentido. Pois assim como os objectos têm valor dentro de um contexto, o comportamento das pessoas optimiza-se no meio que lhes é favorável a diferentes níveis. Desenquadradas do seu meio, da sua razão de ser, a sua essência esvanece-se. Assim também o piano de cauda deixou de ter significado, perdeu o seu valor quando o homem à procura de coisas raras lhe roubou a inspiração ao enclausurá-lo num lugar que não era o seu.
Em suma este conto tem o poder de nos transportar para todos os lugares mais harmoniosos e para nenhum. Tudo depende da nossa predisposição para viajar… E creio que as crianças devem ler este livro porque ele é sem dúvida alguma, um poderoso instrumento de estímulo à imaginação e criatividade.

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