Isabel Allende destacou-se no panorama literário com a obra A Casa dos Espíritos, à qual se seguiram outras não menos importantes que fizeram desta escritora chilena uma referência mundial. Partidária de uma escrita vigorosa, de onde se destacam um traço firme e uma riqueza descritiva muito significativa, a sua obra efectiva momentos de verdadeira intimidade com os seus leitores. Com a trilogia As memórias da Águia e do Jaguar, Allende transforma-se, desta vez, numa voz do romance juvenil, onde se evidenciam, para além do seu típico relato emotivo e aproximativo, diversos apontamentos fundamentais na efectivação de um texto para leitores mais jovens.
A cidade dos deuses selvagens, O Reino do Dragão de Ouro e O Bosque dos Pigmeus são livros que constituem um composto rico em imagens, onde “o voltar a um realismo mágico” é a matéria emergente. Em a cidade dos deuses selvagens, as personagens principais: Alexander Cold, a sua avó (a célebre jornalista Kate Cold) e Nádia Santos, embrenham-se numa complicada expedição em plena Amazónia. A aventura toma forma nas variadas deambulações das personagens e é já, no início do segundo capítulo, que Alexander, com apenas onze anos, se vê perdido em Nova Iorque a braços com uma nova situação, da qual se tem de desenrascar sozinho.
No coração da selva tudo se vai complicando para o jovem rapaz e este, sempre posto à prova pelo carácter rígido e excêntrico de Kate, bem como pelas crenças e relatos místicos de Nádia (em aprendizagem também), tem por única solução a assimilação rápida dos acontecimentos, para que o seu desempenho seja o mais correcto. É, contudo, na lendária «cidade das Bestas» que as duas personagens se vêem confrontadas com um mundo absolutamente fantástico e onírico que lhes permitirá, não uma desajustada relação com a realidade experimentada, como seria de esperar, mas uma verdadeira isotopia com esse espaço fora do tempo, empreendedor em experiências inigualáveis, pois ambos estiveram atentos ao que os rodeava permitindo que as novas experiências se manifestassem como momentos únicos de verdadeiras aprendizagens.
Em O Reino do Dragão de Ouro, segunda parte da trilogia, as personagens principais são, desta vez, transportadas para um ambiente natural de magia no coração dos Himalaias. Aí, no meio de uma esplendorosa paisagem, o jovem Alexander, muito mais do que confrontar-se com os inúmeros perigos da viagem, deve aprender o porquê de uma existência levada a cabo com a sabedoria da sinceridade e da serenidade. Aqui, o saber ancestral de uma outra cultura prende-se com os ensinamentos do monge budista para com o seu discípulo, o príncipe Dil Bahadur.
Desde o primeiro capítulo, a extraordinária descrição da relação de absoluta confiança e de grande lealdade e amizade, entre estas duas personagens, realiza no leitor uma interiorização de valores morais, balizados entre a temperança e um auto conhecimento cíclico, o que evidencia a revalidação permanente do crescimento pessoal do jovem discípulo. Mais tarde, sob os ensinamentos do monge e do seu discípulo, Alexander e Nádia compreendem igualmente como criar defesas físicas e fortalecer as suas personalidades através do exercício da mente. Nesse outro lado do mundo, à mistura com uma aventura árdua e perigosa, a força espiritual impõe-se numa mensagem claramente edificadora, onde é possível entender-se o verdadeiro significado da importância da preservação da paz e do amor na terra.
Em O Bosque dos Pigmeus, mais ainda do que no segundo livro, Nádia e Alexandre destacam-se como dois jovens cujas capacidades se revelam merecedoras de grande mérito. Ambos mostram, na selva africana, uma grande predisposição e tenacidade na aplicação das suas aprendizagens, decorrentes das suas anteriores vivências, quer na selva Amazónica, quer nos Himalaias. Já na capital do Quénia, onde o mercado se traduz pelo espaço festivo da diversidade, da cor e dos aromas, até ao coração da selva, o narrador não se cansa de aludir aos encantos de África, rica pelo seu misticismo cultural e ancestral. Desde logo, o leitor mais jovem depara-se com uma realidade oposta aos princípios inerentes ao mundo histórico e empírico-factual, mas que aqui se ajusta perfeitamente ao circundante. Quem falaria de África sem aludir aos seus encantos ritualistas e premonitórios? É fácil compreender que não se trata, apenas, de mais um pormenor para enriquecer a complexidade ficcional do texto. Na verdade, a autora revela uma preocupação, que lhe é já peculiar, e que se caracteriza pelo gosto da descrição pormenorizada de outras realidades.
Parecem-me igualmente fortes as metáforas do jaguar e da águia, presentes desde o primeiro livro, pois estas, muito mais do que retratar uma identificação puramente simbólica dos dois jovens aos seus animais totémicos, mostram, sobretudo neste terceiro livro, a sua força, determinação e maturação na vontade de ultrapassarem as mais diversas adversidades. Sempre que Nádia ou Alexandre se sentem desprovidos de coragem ou derrubados na impossibilidade de vencer mais uma etapa, recorrem, pela crença e pela confiança, ao seu animal totémico que não é mais do que a representação simbólica da força e da vontade inconscientes para a resolução dos seus problemas.
Para além da partilha do dever de onde se podem retirar variadíssimas lições de vida, prende-se a esta última aventura a constatação da sobrevalorização da cultura ocidental em detrimento das ditas terceiro-mundistas. Depreendemos que a autora, através dos ensinamentos de Kate, procura incutir nos mais jovens o respeito pelo o que é diferente, originando no leitor a imediata rejeição da ideia preconceituosa e puramente racista de que só o que pertence aos dogmas da nossa sociedade é correcto e inquestionável
Num continente como África, onde as riquezas étnica, cultural e religiosa não podem dissociar-se sem que haja um desfavorecimento global da relação homem/natureza, Isabel Allende privilegia no seu texto as alusões à aproximação da ciência e da crença, o que, no seu entender, possibilita uma melhor compreensão do mundo e dos outros.
Marco relevante desta última aventura é, ainda, o processo de consciencialização ecológica, ambiental e sócio-cultural que se destaca da aventura retratada na aldeia de Ngoubé. A ilegal extracção de recursos naturais, o uso desapropriado dos mesmos, bem como a promiscuidade exercida sobre os pigmeus é adequadamente retratada nesta terceira aventura. Na verdade, ciente dos graves problemas ambientais e culturais que a ambição do homem causa nas diversas regiões de África, Isabel Allende faz uso da sua voz e reporta, assim, uma outra responsabilidade à literatura infantil.
Fazendo jus ao dom da partilha, nesta aventura, tal como nas outras, verifica-se que o diálogo com os mais jovens é possível, sobretudo, se ele for franco. Por isso, Isabel Allende não descartou desta trilogia o misticismo mítico-simbólico que tanto enriquece a sua escrita e, a meu ver, é bem do gosto daqueles que não se prendem exclusivamente às leituras que se recusam retratar, na coerência do pragmático-factual, uma realidade que não a nossa.
Válido é pois dizer-se que, nestes três romances, a autora soube prender a atenção do leitor, quer pelas hábeis reflexões sobre as civilizações descritas, quer pelos sábios momentos míticos, que originam admiração e respeito pelo contrafactual e inexplicável. Fica-nos, pois, a nostalgia de uma história que acabou. Afinal foram vários os momentos emocionantes que vivemos junto dos protagonistas, apostando fortemente no sucesso dos seus empreendimentos.
Gisela Silva
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