(2003; 1ª ed. Assírio & Alvim)
Texto: Álvaro Magalhães
Ilustração: Cristina Valadas
Apeteceu-me iniciar este texto com um convite bem pessoal e dizer: pegue nos seus filhos ou nas suas crianças, se puder hoje ou, então, num futuro muito próximo, e venha divertir-se e aprender na «Mata dos Medos», que fica lá para os lados de todo o lado, mas onde a vida se lê de uma outra forma.
Esta obra nasceu de um projecto de parceria, levado a cabo por Álvaro Magalhães e Cristina Valadas, e descreve o quotidiano de umas encantadoras criaturas que coabitam numa mata do concelho de Almada. Estas belíssimas criaturas, animais distintos no porte e na determinação, pertencem contudo, dada à mensagem veiculada na obra, não só à «Mata dos Medos», mas a todos os outros pedaços de terra que nos rodeiam e onde ainda se pode ouvir os sons da natureza.
Mais do que uma sugestão, tomarei em consideração o propósito desta leitura que deverá fazer-se de coração aberto e em parceria com os mais pequenos.
O encanto que nos seduz desde a primeira página prende-se com a consistência literária que este conto de contos (como aprendi a chamar-lhe) possui, e que aponta como principais responsáveis a capacidade que ele tem de criar, sistematicamente recriando, momentos de absoluta fruição, bem como a consistência de uma consciencialização face ao dever ecológico de cada um de nós.
Neste universo fascinante, onde a solidariedade e a permuta são verdades essenciais, o desconhecido apresenta-se numa aventura surpreendentemente calma, mas cativante, onde o tempo parece querer parar para uns e correr para outros, originando uma leitura plurissignificativa em valores e aprendizagens.
Criadas à moda dos contos tradicionais para crianças, as personagens dos Contos da Mata dos Medos primam por uma constante busca identitária, onde os valores que defendem – consoante a sua espécie, costumes ou simples vontade – têm um reflexo absolutamente positivo sobre o seu habitat natural. Neste lugar, onde a imagem da vida quotidiana se deixa ler de forma ajustada, tudo se faz à medida de cada um, mas num projecto de profunda partilha para o bem da colectividade. Se uns querem “ouriçar”, como o Ouriço ou a Lagarta (que se nega a fazer tudo o que as outras lagartas fazem habitualmente, e por isso foi baptizada pelo Ouriço de «Processionária-Não»); outros regem o seu modo de vida pelo empenho e pela persistência, como o Chapim que anda «sempre a correr de um lado para o outro e, por isso, nunca [está] em lado nenhum»; outros ainda, como o Coelho, preferem viver em contínuo sobressalto, desconfiando que o pior há-de vir; enquanto que outros como o Caracol optam viver na busca do sonho eterno. Por isso todos os anos, teima em ir ver o mar que nunca viu, o que o torna feliz por fazer «sempre uma grande viagem e tra[zer] muito que contar».
Contagiada pela deliciosa personagem Ouriço, que gosta de «ouriçar de barriga para o ar a apanhar sol (…)», mas que não deixa de interferir assertivamente na vida que se cria à sua volta, procuro apreender essa atitude serena e de absoluta auto-satisfação que a personagem tem para consigo e para com os outros habitantes da mata. Aconchegada na vontade de «ouriçar», deixo-me levar, tal criança curiosa, pelas páginas deste texto e descubro que afinal «ouriçar» não é, de modo algum, partilhar de uma indolência molenga e infrutuosa. «Ouriçar» obriga ao compromisso de realizar uma tarefa de suma importância: ter tempo.
Sugiro, agora, uma sucinta reflexão que nos permita compreender o que é isto de “realizar uma tarefa para ter tempo”. Ficaram admirados? Pois eu também fiquei. É que ter tempo significa estar «muito ocupado a ouriçar», como explica o Ouriço, e «ouriçar» é «o que calhar», ou seja, querer fazer algo, seja o que for, logo que nos satisfaça. Esta forma deliciosa de ser, criada pelo autor permite-nos subverter as normas do habitual e recorrer, em prol da nossa defesa (veja-se que nunca nos passou pela cabeça querer ouriçar!), à dicotomia existente entre o que significante e o significado pois, ter muito o que fazer afinal também pode significar não ter o que fazer, por isso «não fazer» isto ou aquilo, e ousar ter um «dia não». Um «dia não» que é apenas é um dia de não fazer, e não o dia não que costuma ser o responsável pelos nossos azares. É o tal dia que nos permite usufruir daquilo que nos aproxima da verdadeira essência da vida na partilha da própria felicidade, tal como o Ouriço, a Lagarta e, mais tarde, o Chapim que o fazem com agrado.
O jogo dialéctico, que se contemporiza entre as noções da denotação/conotação e na própria criação de expressões neologistas (criadas pelo Ouriço), ajusta-se às vivências e aventuras destes animais e concretiza, mais uma vez, o estilo literário do autor que adora brincar com as palavras, libertando-lhes o sentido. É pois na voz destas personagens que, na «Mata dos Medos», se constrói diariamente a recriação da própria ingenuidade e do estado puro das coisas. Parece-me inclusive que as ideias jovialmente inscritas no texto assistem a uma fluência absolutamente icástica das palavras que, quase soltas, porque libertas, se enfileiram, uma após a outra, na divulgação de uma mensagem plural: a da solidariedade descomprometida, típica dos puros de coração; a da compreensão de uma amizade enraizada no verdadeiro sentido do comunitário; a da partilha e da entreajuda sistemáticas entre os seres biologicamente diferentes, mas socialmente iguais.
Muitas são as ideias que constroem o fundamento desta obra criada à medida do essencial, e muito haveria a contar ainda sobre estes bichinhos irrepreensivelmente admiráveis porque tão puros e transparentes nas suas atitudes e desejos, contudo, ficar-me-ei, e já em jeito de conclusão, por uma questão (primordial ou não) que se prende com o ser-se ou não feliz e que perpassa as folhas deste livro. Esta é pois a «Pergunta Terrível» que todos evitam, mas que foi feita ao Chapim, que nem sabia se era feliz ou não, mas que desde então deixou de dormir e se sente, como afiança aos amigos, infeliz: ««O que se passa contigo?» perguntou a Toupeira. (…) o Chapim desatou a chorar. «É a maldita pergunta», disse, ele, entre soluços. «Não quero pensar nela, mas penso. Não me sai da cabeça. Por causa dela esqueço-me das horas, troco tudo, ando perdido no ar sem saber o que estou a fazer. É horrível»» (Magalhães, 2003: 40). O Caracol, por sua vez, julgando ter visto o mar, de regresso ao lar encontra-se dividido entre o estar feliz ou o já não poder estar feliz só porque já realizou o seu grande sonho: «Até que enfim, Caracol. E que tal é o mar?» Quis saber a Toupeira «É um mar como outro qualquer», respondeu ele sem entusiasmo. «Gostei mais do momento antes de o encontrar. Os momentos durante não são tão bons e o momento depois ainda é pior.» «Não estás contente?» «Estou. Porque vi o mar. Mas também estou triste.» «Porquê?» «Porque vi o mar. Agora que o encontrei, já não o posso procurar»» (2003: 53).
Esta reflexão, sobre algo tão difícil como o suposto conhecimento do que é afinal ser-se feliz, obrigar-me-ia a uma reflexão minuciosa sobre os hábitos, quantas vezes contrários à prosperidade do cosmos e da própria harmonia que defendemos como nossos e a uma avaliação pessoal, mas não é este o propósito deste texto. Desejo apenas que fiquemos a pensar e que pensemos, sobretudo, no tempo que dispensamos, de relógio em punho, às nossas crianças.
Num apego forte à mensagem aqui presente, quero apenas salientar que este texto, criado a partir do olhar atento e circundante, regista nos vários momentos em que se constrói, a preocupação autoral do belo, do simples, e do amor pelos animais, o que o transforma num pedaço de terra lavrada onde se cumprem a excelência do culto ao puro e ao natural. Acrescento ainda que o dom especial que particulariza a escrita de Álvaro Magalhães nos assegura que a certeza da satisfação plena se faz quando reconhecemos, que «apenas [estivemos] a ser», como aconteceu com o ansioso Chapim da «Mata dos Medos» que, por fim, aprendeu a estar «só a ver, a cheirar, a ouvir», o que lhe permitiu sentir algo que nunca tinha sentido: «respi[ar] profundamente, e a mata inteira respi[ar] com ele».